Os avós. A filha. Os pais.

Cresci enternecida e aconhegada pelo amor dos meus avós. Mimo em exagero, colo maior que o chão, beijos que faziam luz e abraços que dão a paz que só existe nas histórias de encantar.

Ainda não me habituei verdadeiramente a viver inteira sem este amor, ainda há um vazio que grita baixinho, som de fundo que já não incomoda, mas que lembra essa ausência. E não faz mal. Trá-los perto nesse dentro onde me habitam, onde moram em tudo que me deram, me fizeram.

E é no meio desta saudade que nasce a Mafalda. Bebé muito desejado, coração a crescer ainda mais do que a barriga ao longo de 9 meses, espaço para amar mais e mais... mas afinal não é preciso espaço, porque este amor é maior que o seu tamanho, e não se mede, mas cresce sempre, voa gigante a fugir do peito e volta a descansar, o universo inteiro pousado no colo. Náo é um amor que rasga limites, porque eles simplesmente deixam de existir. 

Neste frasco tão pequenino ainda de ser humano, cado gesto parece magia, porque acontece na nossa contemplação. O verdadeiro mindfulness, em que cada segundo é a nossa existência completa. Tudo é mais denso agora, e tudo é mais leve. É a loucura e a lucidez, tudo no mesmo instante. 

Relembro o divino. Volto a acreditar. Nada nisto é mundano. Vem desse Maior que não sei explicar, faz parte desse Tudo que somos, dessa energia que nos faz matéria em uníssono.

E não posso deixar de acreditar que os meus avós habitam nela. Que fazem parte desta essência. Que nessa viagem do princípio do mundo, antes de ser vida a crescer dentro de mim, a nossa Mafalda girou em ventos que lhe sopraram a ancestralidade mais profunda de volta à terra, de volta à existência de olhares e fôlegos, de batimentos cardíacos e suor.

São amores diferentes estes. O que recebemos e demos aos nossos avós; o que recebemos e damos aos nossos filhos. E ainda assim, estão misturados e são um só. Os meus avós. A minha filha.

E a casa? Essas paredes seguras a proteger? Esses são os pais. Os meus pais. Ponto de partida todas as manhãs, horizonte de regresso a cada final do dia. Os pais são essa estrutura, esse palco onde se desenrola a ação, essas tábuas que seguram os nossos passos a cada cena. A casa que tomamos por garantida, porque nos preocupamos com móveis e decoração. Mas antes do sofá mais confortável, do tapete mais colorido, das cadeiras a combinar... estão muros e teto, está o chão, e está essa porta sempre aberta, nessa casa sempre nossa: os nossos pais.

Os meus pais... são os avós da Mafalda. A continuação desse enredo de ternura infinito.

Os meus avós. A minha filha. Os meus pais. Tanto amor a incandescer os olhos. Tanto para viver.

Que assim seja.

Mafalda

Quando nasceste, o mundo nunca mais foi o mesmo. 
Quando nasceste, o mundo ficou igual a sempre. 
Quando nasceste, o mundo deixou de ser mundo. 
Quando nasceste, o mundo passou a ser mundo.

Foi assim esse parto de tudo e de nada, e de tanto a explodir em mim, e de tanto a serenar-me. 
Foi assim esse parto da luz mais incandescente, do escuro mais profundo, da gratidão mais incrível, do medo mais avassalador. 
Foi assim este parto de amor.

É o amor. O princípio de todos os amores que há no mundo. A fonte que é água a saciar vida de todas as formas.
Ninguém precisa da maternidade para saber o que é o amor, mas agora que sou mãe, sei que é esta a matéria-prima de tudo. O amor que os nossos pais nos impregnaram um dia. Este amor assombra a humanidade de esperança e fé. Este é o amor que nos faz continuar a acreditar, continuar a caminhar. Este é o amor que nos faz sonhar a paz.

Ver-te adormecer

Ver-te adormecer é o mundo inteiro de paz. 
Este amor brutal a dar sentido, âncora segura a prender-me por entre o mundo em mar revolto, revoltado.
Os olhos entreabertos. Esse coelhinho contente que descansa na tua mão. A música suave embala o teu sono e abafa o barulho da guerra. Tudo é paz aqui ao teu lado.

Deito-me paralela a ti e és tu todo o meu horizonte. Na hora de dormir e para o resto da vida. És o mais longe que eu vejo. A paz que aspiro.

Um dia quero saber amar assim

E para onde vai este amor?

Este saudade boa que guarda a ternura e as histórias… para onde vai este amor?

Quem me atende do outro lado do telefone como se eu fosse o mundo inteiro, o antes e o depois, o sempre inteiro infinito…Quem abre a porta e sorri de encantamento e alegria pela melhor visita que podia receber?

Para onde vai este amor? Onde encontro mãos enrugadas da vida para agarrar e não deixar que me larguem nunca? E para onde vai este amor? Para onde vai? É tanto. Para onde vai?

O vosso ficou. Está aqui inteiro. Todos os dias. Acho até que continua a crescer, a multiplicar-se, a exponenciar-se. Foi tanto que ainda é e continua.

E para onde vai este amor? Este que quero, que preciso devolver? Sou eternamente criança pequenina em egoísmo desse amor que nos eleva em pedestais de aconchego.

Não ter avós é o derradeiro teste de crescimento. É a verdadeira lição de humildade. Não somos, afinal, mais do que qualquer outro. E estávamos logo ali naquele degrau a seguir a Deus. 

Ainda que guardemos cá dentro o luxo de ter sido amados em exagero absurdo de amor, em esbanjamento de ternura e cuidado, a eternidade foge-nos das mãos.

Falta-nos a devolução. Falta-nos retribuir aos nossos avós um pouco desse imenso. Não aprendemos o invisível. Não sabemos falar-lhes nesse céu que é todo deles.

Ficam aqui dentro em amor que não pára de crescer e já não cabe em nós. Meus queridos avós.

Um dia quero saber amar assim.

meus queridos avós















O meu avô não está cá. 
Não está em lado nenhum.
É literalmente nada.
Ou uma cinza tão reduzida de gente, que mais vale aceitar esse nada inimaginável de quem foi (e ainda é) tanto amor.
O meu avô não está cá e não está em lado nenhum.
Não gosto disso.
Eu sei que é assim, que tinha 91 anos, que teve uma vida de saúde e alegrias, mas não gosto. E não quero gostar. Não tenho que gostar.
Queremos tanto seguir em frente, aceitar as nossas dores e empurrá-las bem lá para o fundo, que quase não percebemos que, mesmo que não vejamos, continua lá, a pesar-nos nesta mochila algures na nossa alma.
E fica mais difícil ignorar quando já empurrámos outras dores lá para o fundo. 

O meu avô partiu.
E com ele partiram todos os avós que foram esse amor incondicional e inesgotável. 
Sempre que um(a) avô(ó) partia, sentia que me forçava a aceitar e redirecionava toda a ternura para os que continuavam por cá. 
E o Bu Quim levou com o amor de todos no final da sua vida, mas também me amou como se todos ainda morassem nele.
E agora ele já não está cá. E agora não está cá ninguém.
E eu quero tanto que estejam.

Hoje não quero ver o lado positivo. 
Hoje não quero dizer que os meus avós são eternos em mim (que são!). 
Hoje não quero dizer que continuam vivos em tudo que deixaram em nós (que continuam!). 
Hoje não quero dizer que ainda os oiço a pulsar em cada batida do meu coração de tanto que me amaram (e, oh… se amaram!).

Hoje quero só ficar triste. 
Quero só deixar doer esta pressão absurda de saudades. 
E não faz mal. Preciso de lembrá-los. 
Preciso de rever na minha cabeça esses dias em que eles eram corpo e olhos brilhantes, abraços do melhor aconchego, certeza, paz, porto seguro, âncora, asas para voar mais alto, mar sereno, tudo e tanto, assim mesmo misturado. 
E lembrar esta imensidão é coisa que não cabe no peito. Porque é um tamanho que não foi feito para ser guardado, mas vivido. Não cabe. E por isso dói. Porque aperta, contorce, estica e rasga. 
Mas é a única forma de tê-los aqui. Então que doa. 
Vale por todas as dores que curaram.

Tantas vezes desligo a memória para evitar a dor. Hoje não. Hoje não. 
Meus queridos avós.

Beleza Colateral

É das coisas mais poderosas, mais comoventes, mais enternecedoras: a beleza que emerge da tristeza. Não a anula, não a compensa, não a justifica. Mas está lá. E tem sempre uma luz que vale a pena deixar iluminar.

Colateral é algo que acontece em simultâneo, em paralelo. Normalmente associado a uma conotação negativa: quando se fala de "efeitos colaterais", geralmente estamos a referir-nos a consequências indesejadas ou não previstas de determinado acontecimento ou circunstância.
Mas beleza colateral é mais do que isto. É estar triste ou em sofrimento e ver esse estado momentaneamente interrompido por instantes de amor, de paz, de fôlego, de alegria.

Gosto sempre de me demorar nas belezas colaterais. Há algumas que não esqueço:
a minha mãe a cantar para a minha avó nos seus últimos dias de vida, a ternura do Glodi quando me viu a acordá-lo a meio da noite, a Duda atenta ao sofrimento do pai quando o avô Eduardo partiu. Tudo pedaços de momentos de tristeza e sofrimento; tudo pedaços da essência mais bonita e pura de amor, de ser humano, ser gente, ser pessoa mais do que corpo, e certeza dessa energia que nos habita (alma, espírito? eu sei lá. eu quero lá saber. a nossa essência. qualquer que ela seja).

Nestes dias de pandemia, medo, insegurança e angústia quanto ao futuro, procuro ancorar-me em pequenas belezas colaterais: a caixa de máscaras gentilmente partilhada no escritório, as palmas à varanda, o sentido de missão dos profissionais que não podem ficar em casa, a preocupação e o cuidado uns com os outros, os rasgos de humor, o tempo extra de mimo e aconchego que nos devolve o sentido de relação.

Para estes dias de recolhimento, fica o desafio: procurar e partilhar belezas colaterais.

E que nos cuidemos. Isolados, mas mais juntos que nunca.
(outra beleza colateral)

#belezacolateral

Faltavas tu


Faltavas tu.

No fim de um caminho lento e demorado em entusiasmos, sorrisos e ternuras, percebo que ainda me falta o teu olhar. E não há como celebrar o Amor sem ti. Ainda não tinha visto o meu avô. Olhei à volta, à tua procura. E tu estavas logo ali. Logo atrás. Pertinho. E em ti, todo o nosso céu de saudades. Agora já não faltava nada.
Não contei a ninguém. Mas tu viste que te procurei. Tu viste que a festa não podia começar sem ti. E bastava sabermos os dois. 

Às vezes ainda sinto esse salto no coração a lembrar-me para te procurar com o olhar. 
Às vezes ainda rodo a cabeça, arqueio as sobrancelhas, estico o corpo...
Mas agora olho e tu não estás lá. Por mais que te procure. 

Hei-de aprender a ver-te cá dentro. 
O invisível (ainda) é muito longe.


E afinal não soubemos só nós.
Dias depois, a prima envia esta foto.
Ela sabia. Ela viu esse olhar sôfrego de ti.
E registou esse momento.
Ela já sabia a benção que era procurar
e ver a devolução do amor com o olhar.
Sempre que olho para este fotografia, vejo o teu sorriso,
o coração fica sereno e sinto que posso celebrar a vida.
Nesta fotografia, ainda consigo ver a reciprocidade do nosso amor,
essa luz dos teus olhos que é(ra) aconhego incondicional.
Nesta fotografia, ainda és. Ainda somos.

Eternidades que acordam

Naquela noite, acordaste-me várias vezes.
Foram intervalos de sono curtos onde conseguiste trazer-me baldes de alegria e gratidão. Em memórias pouco claras no limbo dessa madrugada em vigília, vi sorrisos e abraços repetidos e atropelados; senti esse amor incondicional e constante, essa ternura quase magia, essa presença divina que os avós sempre deixam no mundo. Voltava a adormecer com a tua imagem de paz, para logo a seguir acordar com as tuas mãos a aquecerem as minhas e de novo esse amor gigante a abraçar o sono. 
Ainda não sabia se estávamos em despedida, e hei-de querer-te sempre mais, mas só conseguia pensar no tanto a agradecer. No tanto da minha vida que vem de ti, no tanto de amor que somos, no tanto, tanto, tanto.
E então, partiste.
E então, és eterno.

(Até já.)

Balanço

Ubuntu. Eu sou porque tu és. Somos.
Dias em Moçambique, dias em Ubuntu, dias em Amor.
E agora sempre?

Balanço destes dias. 
E coração a balançar.
Não sabe se vai ou se fica. 
Tem a certeza da viagem, do percurso, da âncora a aguardar.
Mas balança em vento de luz, entre um e um que só são reais na intenção.
Coração balança contente de vida. Balança pesado de inspiração. 

E neste balanço, o mais importante, é partir sem ir embora.
Fazer as malas sem esquecer nada e sem ir embora.
Entrar no avião inteira sem ir embora.
Ficar.
Ficar nos dias e nas pessoas que nos impelem a ser mais e melhores. Ficar na contemplação, no cuidado de entrega, no despojamento que deixa espaço para o mais importante. Ficar em mim. Aqui. E partir assim.
(Depois desta plenitude boa, não posso ir embora de mim.)

Fecho os olhos e há um sol a iluminar. Incandescente de paz no sentir.
Na escuridão dos meus olhos fechados, há cores a dançar. Há um silêncio solene rasgado por risos contentes e logo novo silêncio de escuta. Alegria a ressoar cá dentro. Olhos em água brilhante na emoção deste encontro tão bonito.
Adormeço em sonhos das imagens dos últimos dias, bêbada de gratidão deste Tanto imenso.

Foram dias repletos de inspiração com pessoas incríveis. Mostraram-nos um Moçambique de sonhos e caminhos, de pontes largas e sólidas a ligar todas as esperanças num mapa de novas estradas.

E nos profundos, demorados e repetidos abraços da despedida, ficámos misturados nas energias felizes de quem acredita no Mundo.

(E nada disto é exagero de metáfora ou poesia. Foi assim mesmo. Coração a explodir sereno. Tanto. Tanto. Tanto!)

Ubuntu. Eu sou porque tu és. Somos.

Estamos juntos!


Agora

Agora. Sem correr para o depois. Agora. Tanto espaço. Tanta Energia. Agora.

Daqui a poucos minutos (talvez não tão poucos assim, que o vôo está atrasado), estarei algures num pedaço de céu a caminho de Moçambique.

10 anos depois, vou regressar a uma terra que me ensinou a amar inteira quando eu achava que era impossível amar mais, me ensinou a amar melhor quando, entre a ingenuidade e a prepotência, achava que não havia mais a aprender.
E descobri, então, que sempre que achamos não haver nada a aprender, é quando mais precisamos de ensinamentos.

Há 11 anos, quando corri pela primeira vez para Moçambique, cheguei cheia de pressa de fazer coisas e obrigaram-me a parar. Embati num muro duro, implacável e indiferente à minha velocidade e à minha agenda. Mas não doeu. Essa parede alta era forte, mas suave, e o choque terminou numa espécie de abraço metafórico, de aconchego e novamente força a impelir. E antes de fazer o que quer que fosse, tive(mos) que aprender a estar. Estar. Coração todo ali. Consciência do tempo e do espaço. Gratidão pelas pessoas. Confiança no caminho. Entrega. Entrega total. Estar.
E depois sim, fazer. E fiz(emos) coisas tão bonitas! Porque estava(mos).
Há 10 anos, um ano depois, voltei a Moçambique, já em plenitude feliz, coração todo a explodir da magia dos reencontros.

Talvez não seja assim por acaso este regresso agora.
Os últimos tempos têm sido de fazer. Fazer imensas coisas, numa agenda preenchida e tarefas sobrepostas num castelo torto. Mas não estou. Não estou inteira em mim nem nos outros. E desta forma não faz sentido. Porque não faz sentir.
E se as minhas pessoas bonitas me aceitam assim, em pedaços de tempo contados e escassos, que não aceite eu estar tão pouco, que me lembre desse muro que me empurrou para me abraçar. 
Profundamente grata por esta rede incrível de suporte, cuidado e amor, quero aprender a guardar espaços de tempo sagrados de celebração discreta - mas atenta - da vida e dos outros
E imponho a mim própria este limite, este ponto final em malabarismos. Agora Moçambique. Outra vez. Tantos anos passaram e tanto para (re)aprender. Dias que se esperam de Luz e Amor. Quero só saber que vou aterrar inteira e permitir-me essa comunhão plena e entrega genuína.
E depois, aproveitar o balanço, e voar de volta para cá, nessa certeza de que 2018 terá que ser um ano para Fazer menos e Estar mais. Fazer melhor, mais atenta, com mais cuidado. Mas Fazer menos. Dizer que não quando for preciso, só para garantir que cada Sim é total e será vivido e desfrutado.
E Estar mais. Demorar-me nas casas e nos encontros. Ter conversas mais longas. Demorar-me menos no relógio para o compromisso seguinte e mais nas conversas que ainda esperam tantas palavras.

E agora, Moçambique.
E agora, viver agora.
Até já.